• Despidos em volta do fogo

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28 de abril de 2014 por 

“Todo mundo assim que nasce é nu de espírito e de corpo”, foram as primeiras palavras de Abidoral Jamacaru em volta de uma fogueira, no último sábado (26), no largo da RFFSA, no Crato, durante a estreia do projeto Narrativas em Volta do Fogo, organizado pela ONG Mediação de Saberes, em parceria com o Centro Cultural Banco do Nordeste e a Universidade Federal do Cariri (UFCA). A proposta do projeto é convidar um narrador para compartilhar suas memórias e vivências, resgatando os antigos costumes tribais de reunirem-se em volta da fogueira, repassando memórias e culturas dos povos através da oralidade.

Com a intenção de “despir-se”, Abidoral trouxe um pouco de sua vida para ser compartilhada entre os que estavam naquela noite sentados em volta ao fogo, para ouvir o cantor. Inicialmente, o coordenador do projeto, Tiago Coutinho, professor do curso de Jornalismo da UFCA, apresentou a proposta do Narrativas e deixou o microfone aberto para Abidoral esbanjar suas vivências, e através de seu trajeto de vida, construiu uma verdadeira crítica à atual sociedade de consumo, relembrando um Crato antigo, ainda com pouca luz elétrica e suas lembranças na Chapada do Araripe.

Aos poucos, as pessoas iam se acomodando, chegando mais gente a cada minuto, para olhar aquela roda no meio da RFFSA, que atraia a atenção dos transeuntes. Disputando com o barulho dos carros, a voz baixa e calma de Abidoral Jamacaru trouxe memórias de quando haviam poucos carros no Crato, e a criançada se admirava com a luz dos faróis dos automóveis. Também fez uma crítica à intervenção desenfreada do homem no espaço geográfico, lembrando de quando o Rio Granjeiro ainda não havia se tornado um esgoto e não era um canal que transborda todo ano no período de chuvas.

Abidoral também expôs o início de sua carreira, lembrando que sua primeira música era sobre o natal. Hoje um músico atemporal e antropofágico, o cantor reconhece que suas primeiras canções ainda era simples e longe do seu auge. Popularmente, os festivais de música se estendiam por todo país e demais da América Latina, devido à contracultura que tencionava com as ditaduras vigentes nos países latinos. A influência do Regime Militar criava hábitos negativos, como a pejoração do comunista como comedor de criancinhas, muito usual no Crato daquela época, além da tentativa de apagar da memória o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, movimento messiânico organizado pelo beato José Lourenço, semelhante ao de Canudos, na Bahia, famoso pelo seu líder Antônio Conselheiro. Assim como a Guerra de Canudos, o Caldeirão foi duramente massacrado pelas tropas de Getúlio Vargas e de latifundiários locais, que não aceitavam a comunidade.

Viva Víctor Jara!

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Ainda relembrando seu começo de carreira, Abidoral falou sobre seu primeiro show, em Fortaleza, quando um amigo produtor decidiu lhe levar para lá. Ainda com poucas canções e acostumado a tocar despretensiosamente, o músico topou a ideia e cantou na capital cearense. Abidoral conta ainda que colegas lhe pediram para gritar a frase “Viva Víctor Jara”, em referência ao ativista político chileno morto na ditadura de Pinochet. E assim fez Abidoral, deixando o público em delírio, mas o cantor ainda era despolitizado, e entoou as palavras sem saber quem era Víctor.
Ao final, todos se despiram de seus espíritos com a simplicidade de Abiral em suas memórias e canções, ao redor do fogo num Crato agora atordoado de carros, luzes e eletrônicos. Após as palmas, Tiago Coutinho lembrou que a narrativa continua, no próximo dia 31 de maio, com a Mãe Maria de Xangô, no Marco Zero.

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